segunda-feira, 1 de junho de 2009

Porque a arte é assim

Porque a arte é assim
por maneco nascimento

Não se pode dizer, nunca, que as memórias não se salvam por si só. Como os espirais do tempo haverá sempre sombras e luzes que passem despercebidas ou muito visíveis a olhos mais atentos. E no caminho da vida vertem-se as pequenas, médias e grandes lembranças à memória mediadora da sobrevivência da espécie, enquanto registro social e político.
Teresina tem acompanhado há mais de trinta e tantos anos a arte de representar de Lari Sales, um dos mais expressivos expoentes da cênica local. Encarnou a heroina Jovita em “Raimunda Jovita na roleta da vida”, direção do grande José da Providência e Raimunda Borborema, em “Os dois amores de Lampião antes de Maria Bonita, só agora revelados”, direção de Arimatan Martins. As personagens foram compostas pelas linhas de nosso saudoso Chico Pereira da Silva. Em outro momento, Lari encarnou Maria I, a Rainha Louca, em “Ópera da Liberdade”, espetáculo homenagem aos duzentos anos de morte de Tiradentes. Também emprestou seu livre arbítrio a Herodes, composição impressionante, na peça “Ópera da Estrela Guia”. As duas obras foram dramatizadas para o Adro da Igreja de São Benedito com texto de Aci Campelo e direção de A. Martins. Dirigida por Everaldo Vasconcelos, compôs a cônjuge traída por Zenóbia, uma camela, em “15 Anos Depois”, do texto de Bráulio Tavares.
Pelo aniversário de 150 anos de Teresina vestiu-se de Mãe do Crispin – o do Cabeça de Cuia - na montagem de “Teresina, Rios e Mitos”, texto de Aci Campelo, Música de Aurélio Melo e Direção de Paulo de Tarso Libório. Entre muitos outros trabalhos, também dirigiu e atuou numa versão de “Os saltimbancos”, de Chico Buarque de Holanda, com arranjos locais de Roraima. Fazia uma Galinha muito legal.
Não será por falta de registros que a memória do teatro local se ressentirá. A atriz Lari Sales é bamba, desde que o mundo é samba. Nesse momento, dispõe, em cartaz, de duas pérolas: “Amar se aprende amando”, texto de Benjamin Santos com Direção de Anne Amorim e “A Rainha do Rádio”, texto de José Safiotti Filho e mapa cênico de Lari e da companhia eficaz de Amigos.
No último dia 22 de maio de 2009, às 21horas e trinta minutos, durante as festas de aniversário de uma Rádio do Bairro Dirceu Arcoverde, a atriz subiu ao palco do Teatro Municipal João Paulo II para viver mais uma vez Adelaide Fontana, locutora da Rádio Esperança, numa cidadezinha do interior. Num estilo peculiar de arte e cultura, nas ondas do rádio, abre reflexão acerca de programas de antigamente e ilustra o saudosismo dos velhos tempos. Da sintonia dum horário de agradável locução em que vivia-se momentos de emoções construídas à mente. Demitida da Rádio ela faz um desabafo, contraria a ética da profissão e se vinga de seus detratores e donos da cidade ao descobrir os podres de cada um.
Lari Sales, como um bom vinho, encorpado pelo tempo, mostra dicas de como sentir-se bem diante de um bom texto e da construção da personagem. Brinca de mentirinhas delicadas e apropria-se do sarcasmo autoral para fazer pulular o discurso da idade, das pessoas tornadas invisíveis, pois descartáveis, da resistência em preservar a identidade mesmo que a custa do recomeço.
No teatro se recomeça todo dia e a cada cena. Lari é forte, densa e primordialmente atriz. Fosse preciso fazer outra coisa faria, mas ser atriz parece de um charme e prazeres que só Dioniso explicaria.
A cidade não prescinde de Ana Maria Rego, Lari Sales, Lorena Campelo, Eleonora Paiva, Izinha Ferreira, Vera Leite, Carmem Lúcia, Bid Lima, Layane Holanda, Cláudia Amorim, Tércia Maria, Sandra Farias, Janaina Alves e os mais novos ventos que por aqui sopram. A memória do teatro local está preservada e preparada para todas as cenas em quaisquer palcos.
Porque a arte é assim, para os pequenos e os grandes textos, para os maduros e os novos intérpretes. Lari Sales é assim, amor conquistado a cada palco, a cada fala inflexionada e a cada cartografia de luz em energia bacante.
Viva o teatro brasileiro e a boa memória construída pela arte e cultura da cena local. Evoé, fortes mulheres de doces e delicados timbres dramáticos.

Teresina, 23 de maio de 2009

Por Maneco Nascimento